O PENSAR DO NOVO HUMANO | ENSAIO #01

por Árlan Dias Sá

O conceito de ialoceno aqui se estabelece como um método de análise da realidade, ou seja, se transforma em uma lente pela qual podemos ver o mundo, e que oferece a nós como espectadores um estranhamento do que poderia ser em outro momento considerado evidente. É através desse método que vamos analisar e, portanto, estranhar a nós mesmos.

O conceito do ialoceno pressupõe por si só que vivemos em um novo tempo, um momento em que as inteligências artificiais têm impacto sobre a existência humana. Mais do que transformar dinâmicas sociais, a inteligência artificial redefine a forma como construímos nossa própria identidade. Não somos mais como antes da existência das IAs, somos hoje como ciborgues, meio humano meio máquina. Não possuímos sistematicamente braços mecânicos ou corpos super-humanos, mas determinamos nossas capacidades de fazer, lembrar ou agir, a partir de ferramentas que possuímos, mas que são externas a nós. Minha memória não é composta mais somente pelo que lembro diretamente, mas pelas informações que deposito em um sistema de informação compartilhado chamado de nuvem. Penso que sou capaz de encontrar qualquer informação pública rapidamente, mas essa capacidade é altamente dependente de uma ferramenta de busca automatizada que está disponível em um aparelho celular ou computador. Sou, portanto, mais do que meu corpo e posso mais que minhas capacidades. Sou um híbrido humano-máquina. Sou aquilo que posso diante dessa nova realidade e posso aquilo que consigo através dessas ferramentas.

Nossas interações constantes com as tecnologias da informação têm impactado profundamente a maneira como nos construímos e existimos na realidade, conforme discutimos até aqui. Porém aqui surge uma pergunta. De que forma nos relacionamos com essas tecnologias e de que maneira elas se relacionam conosco? Grande parte das informações que consumimos através de inteligências artificiais hoje são fruto de IAs generativas e através de produções textuais, ou seja, grande parte dessas relações ocorrem através das palavras. Mas a comunicação escrita e oral não está desprovida de questões, uma vez que o sentido e significado atribuído a cada termo pode ser interpretado de forma diferente por cada indivíduo. Como sei que aquilo pelo qual me referencio é necessariamente o mesmo pelo qual outro o faz? Colocando de outra forma, como sei que o que eu entendo por liberdade, por exemplo, é o mesmo que você entende? Mesmo que tentemos explicar um ao outro nossos conceitos, possivelmente recorreremos a outras palavras que tornariam nossa tentativa de elucidação uma busca infindável com incessantes novas e tão complexas quanto variáveis, como uma hydra linguística, sempre que cortamos uma cabeça, surgem novas para combatermos. Desse modo, torna-se evidente o impacto das IAs sobre o humano no IAloceno, entretanto, a maneira como ocorre e os efeitos que ele possa vir a ter não se dão da mesma maneira em todos, mesmo quando os meios são os mesmos. Apesar da incapacidade dessa tentativa de elucidar o impacto das inteligências artificiais no Ser do humano, fica evidente o quão complexo esse processo se dá no pensamento e a magnitude com que esse impacto ocorre.

(...) híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues.
— Donna Haraway